Introdução

Etnodemografia da criança abandonada na História do Brasil: séculos 18 e 19
[Ed. Note: The 45 footnotes accompanying the published paper are excised from this electronic version.]

Composta preponderantemente por jovens, denunciando uma fecundidade elevada, a população brasileira caracterizou-se, até bem recentemente, por sua pirâmide de idade de base bastante larga. Praticamente a metade—e, em algumas épocas, até mais da metade—de seus habitantes situava-se em idades inferiores a 20 anos, tanto no campo como nas cidades. Citando um exemplo setecentista, em 1798, a capitania da Paraíba tinha 56,7% de sua população livre com menos de 20 anos (19,6% eram menores de 10 anos). Na cidade de Porto Alegre, em 1846, a população era composta de 52,9% de menores de 20 anos, sendo 29,4% de crianças, com idades inferiores a 10 anos.

Os exemplos poderiam ser multiplicados, com resultados similares, de Norte a Sul do País, tanto na época colonial, como nos séculos XIX e XX até antes dos anos de 1970, quando a fecundidade brasileira começou a diminuir.

Uma segunda característica histórica da população brasileira está em sua constante e intensa mestiçagem, a partir das três matrizes étnicas que a compuseram.

Em 1798, 61,2% da população brasileira eram negros e mulatos, 31,1% brancos e 7,7% índios domesticados. Em 1835, os brancos eram 22,3%, o número de negros e mulatos subiu para 69,8% e os índios chegavam a 7,9%.

A capitania de Minas Gerais, no censo de 1776, registrava uma população assim constituída: 22% de brancos; 26% de pardos (em geral mestiços de brancos e negros); e 52% de negros. Pode-se argumentar que essa maciça presença de negros era uma situação singular, decorrente da economia do ouro que, em plena produção, criava enorme demanda da mão-de-obra escrava recém trazida da África. Mesmo na fase de declínio do ciclo do ouro, em 1821, considerando-se apenas o segmento livre da população, a composição étnica da Província mineira era: 39% de brancos; 45% de mulatos, e 16% de negros.

Com variações regionais, a estrutura da população livre brasileira, por etnia, era fundamentalmente a mesma desde a época colonial; ou seja, havia, por toda parte, uma parcela significativa constituída de mestiços e negros. Nem mesmo a entrada de grande número de imigrantes europeus, depois da década de 1870, mudou substancialmente essa situação, contrariando as expectativas dos eugenistas da época. Hoje, cerca de 45% dos brasileiros declaram-se negros ou pardos.

A terceira característica da população nacional, que nos interessa ressaltar neste estudo, diz respeito aos elevados níveis de concubinato e, por conseqüência, de ilegitimidade.

De fato, a população brasileira, em toda sua história, não pôde reproduzir inteiramente o modelo da família ideal, criado no Ocidente cristão e trazido ao Brasil pela Igreja e pelos colonizadores portugueses. Devido a razões complexas—e que vêm sendo estudadas pelos demógrafos historiadores nas últimas décadas—uma grande parcela da nossa população foi fruto de relacionamentos mantidos fora do quadro da família sacramentada. Somente na cidade de São Paulo, entre 1750 e 1850, 25% das crianças nascidas livres provinham de casais concubinados, e 15% tinham sido abandonadas ao nascer. Com certeza, uma boa parte destas era também de ilegítimos.

Os expostos

Para atender aos objetivos deste trabalho, seria importante saber a proporção de expostos em nossa população. É uma tarefa difícil, em termos quantitativos, pois, neste setor, os estudos são poucos e pontuais; e as fontes dispersas, omissas ou destruídas. Tais estudos (todos na área da Demografia Histórica) partem das séries de registros paroquiais de Batismos, de Casamentos e de Óbitos. Infelizmente, além de serem poucos, em alguns deles os dados não podem ser utilizados pois não foram desagregados. Assim, por exemplo, apresentar as séries de batismos, sem separar os nascidos livres dos escravos e sem esclarecer também em que categoria a criança se enquadrava (legítimos, ilegítimos e expostos)—como muitos dos poucos estudos existentes fizeram—impede o bom conhecimento da ilegitimidade. A ilegitimidade de livres foi essencialmente diversa da dos escravos. Esses, por sua condição de cativos, não tiveram a possibilidade de escolher seu estado civil; ou melhor: não tiveram liberdade de escolher o casamento. Dependendo da região e da época, de 75% a quase 100% das crianças escravas foram geradas fora do contexto do casamento sacramentado.

Para se ter uma ordem de grandeza do fenômeno da ilegitimidade e do abandono no País, montamos um quadro (Figura 1) com vários índices já estudados (ou por nós estabelecidos) de legitimidade, de ilegitimidade e de exposição de crianças, em localidades distintas. Por esse quadro, pode-se ter uma visão, ainda que parcial, das fortes variações regionais—e inclusive em uma mesma localidade—desse fenômeno ao longo do do tempo.

Por esta pequena amostra, limitada a algumas poucas localidades do Brasil no período compreendido entre o fim do século XVIII e o fim do século XIX, a média geral mostra que, de cada cem crianças livres que nasceram, cerca de cinco foram expostas.

O mesmo não se pode dizer dos ilegítimos. Virtualmente, cerca de 1/3 das crianças nascidas livres eram ilegítimas; ou, de cada cem bebês nascidos livres, em média 36 eram ilegítimos. Portanto, ilegítimos e expostos representavam cerca de 40% dos nascimentos livres no período analisado.

Infelizmente, as séries de que dispomos cobrem períodos díspares, e poucas delas cobrem um período mais longo. Disso resultam dificuldades em compará-las e em acompanhar, ao longo do tempo, os fenômenos da ilegitimidade e do abandono. De qualquer forma, algumas evidências surgem do quadro em questão.

No Brasil dos séculos XVIII e XIX, os índices de ilegitimidade foram elevados, em todos os tempos e locais estudados, apesar das diferenças regionais. Os índices mais baixos ocorreram nas áreas de predominância da economia de subsistência, como, por exemplo, as cidades de Curitiba (no século XVIII) e de Ubatuba (no século XIX). Por sua vez, áreas de concentração urbana mais forte, como as cidades de Salvador e de Ouro Preto registraram índices de ilegitimidade bem mais altos do que a média: 43,1% e 39,5%, respectivamente.

Percebe-se, ainda, um movimento que parece generalizado: uma alta relativa da ilegitimidade ao longo do século XVIII, que começa a diminuir nas últimas décadas do século XIX. O pico dessa alta situa-se entre os anos de 1850 e 1860.

 

Fig. 1. Legítimos em várias localidades brasileiras:

População livre (
Fonte: Marcílio, 1998, pp. 232-3)

Quanto ao fenômeno da exposição de crianças, a primeira constatação é de que não assistimos no Brasil a um grande recrudescimento do abandono de crianças, como o que ocorreu na Europa no século XIX. Se este foi o século do abandono em massa de bebês na Europa, podemos dizer que para nós foi o século da ilegitimidade. Ainda assim, abandonar 5%, em média, das crianças que nasciam livres, no Brasil dos séculos XVIII e XIX, não deixa de ser um índice significativo.

Abandonavam-se mais meninos ou mais meninas no Brasil?

Na Roda do Rio de Janeiro e na de São Paulo, as proporções entre os sexos foram harmônicas. Esse mesmo equilíbrio foi verificado em Sorocaba, entre 1737 e 1845, por Carlos Bacellar; a razão de gênero entre os abandonados em casas de famílias foi de 101,9 meninos para cada cem meninas.

No entanto, na Roda de Porto Alegre, entre 1847 e 1856, os expostos entrados na Roda da Misericórdia local foram de 488 (37,6%) do sexo masculino e de 811 (62,4%) do sexon feminino. Nessa cidade houve uma nítida predominância de meninas, na razão de 60 meninos para cada 100 meninas. As causas que explicariam essa predominância, não são claras, mesmo que fossemos tentados a pensar num possível machismo do gaúcho.

Em todos os casos as variações não são significativas, com exceção de Porto Alegre, o que demonstra que, de acordo com os nossos costumes, não houve preferência dos pais em enjeitar os filhos de um sexo em favor do outro.

A distribuição das crianças da Roda, segundo a etnia, mostra realidades por vezes pouco esperadas (Figura 2). Na Roda de São Paulo, entre 1907 e 1951, das 713 crianças expostas, com etnia declarada, o número de negras e pardas foi muito inferior ao de brancas. Em 1938, por exemplo, as crianças brancas constituíam 64,7% do universo das expostas nesse ano, enquanto as pardas representavam 17% e as negras, 15,9%. As demais eram amarelas. Nesse caso, como demonstra Carvalho, as proporções refletiam a composição da população da cidade, que era de 90,7% de brancos, em 1940.

A distribuição das crianças expostas na Roda de Salvador, de acordo com a etnia, acompanhou, de certa forma, as mudanças na composição da população da cidade, ao longo dos séculos XVIII e XIX. A população da cidade, no século XVIII, era majoritariamente branca, sendo 39% de pardos e negros. A entrada maciça de escravos africanos no mercado de Salvador, particularmente no período que vai da repressão britânica ao tráfico negreiro até a sua extinção, aumentou fortemente. Como conseqüência, houve um aumento da presença de negros e mulatos na cidade, o que pode ser observado nos dados do censo de 1872: 72% de pardos e pretos. Essa mudança na composição étnica da população de Salvador refletiu-se nas mudanças da composição dos expostos na Roda. No século XVIII eram predominantemente brancos. No final do século XIX eram quase integralmente mulatos e pretos.

Na Roda do Rio de Janeiro, entre 1864 e 1870, os expostos brancos ultrapassavam a metade (57,7%), enquanto os pardos representavam 31,3% e os negros 10,8%. Infelizmente, não dispomos de dados para o fim do século XIX, a fim de saber se as proporções foram semelhantes às de Salvador, no mesmo período.

Uma questão relevante, neste estudo, é: as crianças eram enjeitadas logo depois do nascimento ou os pais demoravam algum tempo para se decidir ou para ter coragem de tomar a decisão de abandonar o filho. Para responder a essa questão a melhor documentação serial de que dispomos é a da entrada de expostos na Roda de Salvador.

A partir de 1846, os registros de entrada de expostos na Roda de Salvador anotam a idade presumível do bebê que acabava de chegar. Com base nessas informações, pudemos determinar, para os anos de 1845-46, a média de idade de 1,7 mês para os meninos que entravam e de 2,9 meses para as meninas. A maioria das crianças deixadas na Roda era de recém-nascidos ou com poucos dias (69,6% de meninos e 66,6% de meninas).

Quase cem anos depois, em 1929, os comportamentos e as mentalidades em relação ao fenômeno do abandono dos filhos mudaram. Depois de abolido o sistema de anonimato do expositor, com a implantação do sistema de admissão aberta (ao lado do antigo sistema da Roda), além de caírem as taxas de abandono, já não havia tanto a intenção de abandonar definitivamente o filho na Roda. De fato, depois dessa reforma, as mães que deixaram seus filhos nos Asilos de Expostos, por dificuldades de todo tipo, declaravam a intenção de buscá-los e, efetivamente, a maioria delas voltou para recuperar seus filhos.

Essas mudanças refletem-se na idade média do abandono, que passou a ser, em 1929, na Roda de Salvador, de 2,8 anos para os meninos e de 2,4 anos para as meninas; Trata-se, como se vê, de uma mudança radical, em comparação com as médias do período de 1845-1846, mostradas anteriormente.

As crianças expostas nas Rodas apresentaram taxas muito elevadas de mortalidade infantil e de mortalidade em geral: 1/3—ou menos—dos infelizes que eram largados na Roda não chegavam à idade de 7 anos. Esse verdadeiro holocausto de inocentes só veio a preocupar as autoridades responsáveis pela instituição tardiamente.

Crianças sem futuro
O massacre dos inocentes

De todas as categorias que formaram a população brasileira, incluindo a dos escravos, a dos expostos foi aquela que apresentou os maiores índices de mortalidade infantil e de mortalidade geral, pelo menos até o fim do século XIX. Não era incomum, nas Rodas de Expostos, a perda de 30% ou mais dos bebês, só no primeiro mês de vida. Mais da metade morria antes de completar o primeiro ano de existência. Apenas de 20% a 30% dos que foram lançados nas Rodas de Expostos chegaram à idade adulta.

Até o início do século XIX, as autoridades responsáveis por essas pequenas criaturas só estavam seriamente preocupadas com o batismo delas: uma vez batizadas, se morressem suas almas estariam salvas e tranqüilas as consciências das autoridades.

Os comportamentos começaram a mudar ao longo do século passado, e isso é visível na documentação oficial, em especial naquela das autoridades encarregadas da proteção dos expostos. A princípio, toma-se consciência da grave questão da elevadíssima mortalidade infantil dos expostos da Roda. Multiplicam-se então as estatísticas, e as autoridades ficam estarrecidas com a revelação dessa realidade.

Em 1835, o presidente da Província de Pernambuco falava da "mortalidade espantosa das crianças" da Roda do Recife. Emergia uma consciência difusa sobre a gravidade da situação. Em 1873, com estatísticas aperfeiçoadas, o Presidente da Província do Maranhão podia afirmar:
Quem com calma e meditação estudar a estatística da Casa dos Expostos, desde a sua inauguração até o presente, há de reconhecer que a mortalidade ali, durante o período de criação dos meninos, é extraordinária e pungente, comparada com a da sociedade em geral e dos diversos estabelecimentos públicos.
Dos 3.630 expostos que entraram, na década de 1830, na Roda do Rio de Janeiro, 71,8% morreram antes de completar 3 anos. No fim do século passado (1892), os dados oficiais da Casa da Roda de São Paulo registravam como sendo de 61% a mortalidade das crianças de 0 a 1 ano de idade. Em um período mais recente (1897-1951)—quando os meios de defesa da vida da criança já eram bem melhores—entraram 3.254 expostos e, destes, morreram 1.564, ou seja, 48%. Para a época, uma mortalidade de quase metade das crianças, até três anos de idade, não deixa de ser estarrecedora. Esses índices, porém, mostraram tendência a uma ligeira queda ao longo desse período.

Na Roda da Santa Casa da Bahia, desde meados do século XVIII até fins do século XIX a mortalidade infantil nunca fora inferior a 45%, mantendo-se quase sempre no nível dos 60% (Figura 3). Com os dados individualizados que levantamos das crianças expostas na Roda, foi possível estabelecer com maior precisão as taxas de mortalidade infantil. Calculamos essas taxas para alguns anos, a fim de conhecer a sua evolução.



Ao longo de quase dois séculos, os índices de mortalidade infantil na Roda de Expostos da Bahia, embora apresentassem variações, permaneceram elevados até as primeiras décadas do século XX. Entre 1920 e 1930 foram internadas pela Roda 1.530 crianças, 1.153 das quais faleceram, registrando-se um índice de mortalidade de 75,3%. Isso ocorreu mesmo depois de ter sido criada a Liga Baiana contra a Mortalidade Infantil e apesar da ação de médicos higienistas do porte de Matagão Gesteira, que teve grande atuação junto à Roda de Expostos de Salvador.

Há que lembrar que muitos bebês eram depositados já mortos na Roda, ou moribundos. Entre 1758 e 1762, essa Roda recebeu 11 enjeitados mortos, ou seja, 2,7% do total entrado, conforme calculou Venâncio. Trinta anos mais tarde, entre 1790 e 1796, foram depositados 51 bebês mortos, representando 8% dos abandonados na Roda.

Na Roda do Rio de Janeiro, entre 1868 e 1872, foram registrados 3.283 óbitos de bebês, tendo sido 210 bebês nela deixados já mortos, isto é, 6,4%. Presumia-se que muitas das crianças mortas deixadas na Roda seriam fruto de infanticídios. Em sua memória sobre a mortalidade na Roda do Rio de Janeiro, apresentada na Academia de Medicina local, afirmou o Dr. José Maria Teixeira:
...se não for possível diminuir a sua mortandade excessiva, e se a justiça pública não intervier para punir os crimes de infanticídio, que muitas vezes encontram nas Rodas um meio mais fácil de ocultá-los, entregando-lhes crianças semimortas, senão mesmo mortas.
Percebe-se que começou a se esboçar, de forma mais generalizada, uma tomada de consciência da gravidade da mortalidade dos expostos entre as autoridades brasileiras. Mas foi somente no início deste século que se passou a considerar a mortalidade infantil como um problema social, demográfico e político.

Iniciou-se um grande debate entre higienistas e autoridades sobre o "valor" da criança, que passou a ser considerada como um bem precioso para os pais, para a família, para a sociedade e para o Estado. Pragmaticamente, era preciso tornar rentáveis os investimentos realizados com a criação das crianças expostas em estabelecimentos públicos.

Vários médicos higienistas do século passado se dedicaram a ver a mortalidade infantil no seu conjunto e a observar suas causas nas Rodas dos Expostos, oferecendo elementos de compreensão e hipóteses de interpretação. Em uma primeira etapa, no entanto, esses higienistas raramente puderam perceber as verdadeiras razões de tão elevada mortalidade.

As causas dessa elevada mortalidade dos expostos da Roda estavam relacionadas segundo o Dr. Pederneiras, "nos perigos inerentes aos recém-nascidos, à privação do carinho maternal, à falta de desvelo, aos maustratos, privações e incômodos por que passam antes de entrar para a Roda, ao estado deplorável em que nela são depositados, um grande número deles já mortos." Mas a alta mortalidade se devia também "à má colocação da casa em que estavam os expostos, à acumulação de 50 a 70 pessoas na mesma casa, a certas moléstias que afetam constantemente as crianças e à falta de alimento, por impossibilidade de se achar número suficiente de amas."

No entanto, para a maioria dos médicos e das autoridades a causa primeira da grande mortandade de expostos estava no sistema de "amas mercenárias que, em geral, o fazem sem amor e dedicação, tendo em mente somente o interesse pecuniário" afirmava o Presidente da Província do Maranhão. As amas-de-leite—lamentavam eles—eram ignorantes, cheias de doenças, fracas, vivendo em condições precárias e sem dar amor e atenção aos bebês sob sua proteção.

Na Academia Imperial de Medicina, em sessão de 18 de junho de 1846, as amas foram o alvo privilegiado dos ataques na discussão sobre as causas da mortalidade das crianças. Os responsáveis pela Roda da Bahia (1843) concordavam, igualmente, em culpar as criadeiras:
A criação dos expostos...estando presentemente confiada aos cuidados de pessoas particulares, que se encarregam dela mediante a gratificação mensal de quatro mil réis, precisa ser regulada de uma maneira mais conveniente, em ordem a que haja zelo no tratamento das crianças, e que estas infelizes...não sejam indistintamente entregues a quem as procura para criar; a fim de se ver se, de alguma forma, se evita tanta mortandade, pois, de anos a esta parte, os óbitos têm andado na razão de metade dos enjeitados que se lançam na Roda anualmente.
A explicação dada pelo Presidente da Província de Pernambuco (1873), alarmado e constrangido com a alta mortalidade dos expostos da Roda de Recife, era a mesma: o mal estava em confiar os bebês "a amas mercenárias". Em lugar delas seria melhor, em vez de pagar às atuais 80 mulheres, "promover a aquisição de vacas de leite em número suficiente, com cuja sustentação se dispenderia menos do que com as tais amas, sem leite, sem caridade e contaminadas de moléstias ocultas."

Também no Maranhão atribuía-se a alta mortalidade da Roda ao "péssimo, inconveniente sistema, que deverá ser abolido, de se mandar amamentar as crianças fora do estabelecimento. A gratificação mensal de 8.000 réis que têm as amas atualmente é insuficiente."

Alguns médicos higienistas da época insistiam em que a excessiva mortalidade dos expostos da Roda era devida aos prédios e às acomodações inconvenientes e malsãs. "Não tendo o edifício as condições para servir de asilo a crianças, e não havendo zelo na administração, acontecia que a mortalidade era excessiva." Os prédios ou casas dos expostos eram, de fato, em quase todos os casos, precários, impróprios, superlotados, anti-higiênicos, exíguos, mal iluminados, mal ventilados, úmidos, malcheirosos.

Em 1878, as condições higiênicas do Asilo Santa Leopoldina de Niterói, por exemplo, eram as piores possíveis, conforme nos deixa saber um dos mais ricos relatórios elaborados por uma Comissão de Vistoria, nomeada para avaliar as condições da instituição. "Sente-se por quase todo o edifício, aliás bastante espaçoso, as exalações mefíticas das latrinas, situadas por baixo de um dos dormitórios." Na chácara pertencente ao Asilo não havia cuidados com a manutenção e o asseio: "a acumulação de matérias orgânicas e outras imundíces, que hoje em vasta escala abundam, é outro foco de infecção." A falta de limpeza e de higiene imperava. "O vestuário das asiladas estava em inteira sujeira." Suas roupas eram raramente lavadas e das "roupas imundas se desprendem exalações repugnantes" nas palavras da professora Dona Marianna Mattoso à Comissão de Vistoria.

As moléstias contagiosas infestavam freqüentemente o estabelecimento, fazendo vítimas. Tudo por falta de uma enfermaria para isolar as meninas infectadas com moléstias contagiosas, na versão dos médicos da Comissão de Vistoria. Mesmo durante epidemias mortíferas, crianças sãs ficavam juntas com as contaminadas. Em um quadro geral de raquitismo e de carências vitamínicas e organismos debilitados, pode-se imaginar o estrago que tal situação produzia entre as crianças.

Algumas asiladas dormiam no chão, "no assoalho", por falta de espaço para mais camas. Era preciso ainda construir banheiras para o asseio corporal das meninas: as existentes eram muito estreitas e pequenas, não permitindo movimentos para as moças. Os médicos recomendavam "exercícios físicos para a manutenção da saúde psíquica" das educandas.

Verificou a Comissão que a alimentação era mal distribuída entre as mesas, ficando algumas sem alimento. Daí, a maioria das crianças ser "cloroanêmica".

As condições internas do Asilo de Belém do Pará não eram melhores, como denunciava o Relatório do Diretor ao Presidente da Província (1863).
Ali há presentemente falta de tudo; falta do necessário falta do útil… Vi que as aulas, quer as duas de primeiras letras, quer as de prendas domésticas próprias do sexo, estão desprovidas dos utensílios indispensáveis, sem os quais não é possível que elas funcionem regularmente… Mal vestidas, pior ainda se achavam a respeito de comida… De sapato ainda estão pior, porque além de cada uma possuir o único que traz nos pés esse mesmo está roto.
O Mordomo dos Expostos da Roda de São Paulo, em 1932—portanto, em um período posterior a Pasteur e aos avanços da microbiologia—denunciava que "há 30 anos a mortalidade de lactentes se mantém entre 20% e 30% por que ainda não se pode melhorar a assistência canhestra que se dá aos pequeninos expostos." Além de ajuda financeira, que os particulares poderiam dar, o Mordomo julgava necessária a construção de um pavilhão de lactentes, e "modificar o sistema de ingresso dos enjeitados, substituindo a Roda pelo ‘escritório de admissão’, ou fazer os dois funcionarem paralelamente."

O contágio de moléstias dentro dos estabelecimentos era fato comum, e denunciado por seus responsáveis. Sobre a Roda do Recife, relatava o Presidente da Província, em 1876:
Moléstias de caráter epidêmico, tais como as oftalmias, varíola, parotides, erisipelas e febres diversas acometeram os educandos, e as que sem aquele caráter mais predominaram foram as do aparelho do tato, da visão, digestivo e respiratório, febres eruptivas, que se tornaram contínuas e outras intermitentes.
Em 1927, a causa das mortes das crianças da Roda de Salvador era de caráter infectocontagioso, em quase cem por cento dos casos. Em outras palavras: das 146 crianças entradas na Roda, 96 morreram (65,7%); 26 destas tiveram como causa a atrepsia (desordem nutritiva da infância, que se caracteriza por emaciação progressiva e enfraquecimento de todas as funções orgânicas); 29 mortes foram resultantes de enterite ou gastroenterite; 25 foram causadas por "heredosífilis"; 5, por debilidade congênita; 4 foram conseqüência de raquitismo; 2, por verminose;2, por sarampo; e 3, causadas, respectivamente, por nefrite, adenopatia da traquéia e tuberculose pulmonar.

Os expostos de Porto Alegre—entrados na Roda local no período de 1854 a 1880—morreram de gastroenterite (12%; de diarréia e desinteria (11%); de mal-de-sete-dias (5,5%); de gastrite (3,4%); de tuberculose (1,9%); de varíola (1,4%); dentre outras causas de natureza infectocontagiosas.

Na Roda de São Paulo, da mesma forma, a causa mais freqüente da morte dos expostos foi a gastroenterite. Em uma época mais recente, já no século XX, também o sarampo, a coqueluche, os vermes, a sífilis, a broncopneumonia, a tuberculose eram responsáveis pelas principais causas de morte das crianças.

Até as primeiras décadas do século XX, apesar da mobilização médica em todo o País, para diminuir as altíssimas taxas de mortalidade infantil, os resultados dessas cruzadas de combate à letalidade da infância não apresentaram resultados imediatos e alentadores.

Em meados do século XIX, a questão da mortalidade infantil já era considerada como um problema maior de saúde pública e a ação escolhida para combatê-la foi, inicialmente, atuar sobre o meio físico. Isso se traduziu na adoção de medidas de higiene pública ligadas ao arruamento, ao abastecimento de água, à rede de esgotos, às condições das moradia e à melhoria das instalações de colégios e asilos de expostos, como também na realização de programas em favor de uma alimentação melhor na primeira infância.

Deliberava a Mesa da Santa Casa da Bahia, em 1870, que:
a alimentação dos expostos maiores de 6 anos (de um e outro sexo) será igual, em quantidade e qualidade, à que é dada às órfãs do Coração de Jesus, devendo a Irmã Superiora informar-se a este respeito, além de aumentar a mensalidade das amas de leite para 10$000.
Nesta primeira etapa, deve-se ressaltar o enorme contraste entre a vontade de agir, de um lado, e a fraqueza dos meios técnicos e dos conhecimentos específicos sobre as doenças das crianças—assim como dos meios de curá-las—de outro.

As idéias populacionistas no Brasil tinham como um de seus objetivos lutar por uma população racialmente mais próxima da categoria branca dominante. Esses objetivos estiveram presentes em todo o discurso higiênico: na luta contra a mortalidade infantil, na proteção à infância, no estímulo à imigração de europeus e na valorização da maternidade, da mãe de família e da amamentação natural.

A partir do terceiro quartel do século XIX, o centro das atenções do higienismo esteve ligado à idéia de família, à educação moral, sexual e física, e no combate à prostituição. A tese defendida por Amaro Ferreira das Neves Armonde no Rio de Janeiro, em 1874, revela esse novo enfoque no próprio título: Da educação physica, intellectual e moral da mocidade no Rio de Janeiro, e de sua influência sobre a saúde.

Para se atingir esses objetivos o melhor meio seria centrar todas as atenções na educação da mãe que, no espaço privado, prepara o cidadão para a vida pública. O poder médico interveio no espaço da família para educar a mãe, com tratados, guias e folhetos de "Conselhos às mães". A mãe deveria conhecer o funcionamento do seu corpo para a maternidade, ter noções mais sólidas de higiene, saber como se alimentar, vestir e educar os filhos de modo apropriado. Começava a ser articulado e interligado o binômio mãe/ filho que seria igualmente importante na luta contra a mortalidade infantil.

Os resultados dessa cruzada nacional começaram a mostrar timidamente seus frutos depois da década de 1930, quando os índices de mortalidade infantil passaram a registrar uma ligeira queda.

No caso especial das instituições de amparo à infância abandonada e de assistência aos bebês pobres em geral, o principal fator responsável por parte significativa da mortalidade infantil era, com toda a certeza, a questão do leite. Colocava-se, então, o problema na alimentação dos bebês e das crianças, como forma eficaz de combater a mortalidade infantil. Surge um novo conceito da mortalidade infantil determinado estreitamente pela incidência de doenças das vias digestivas. Buscava-se, agora, resolver os problemas do leite em todas suas facetas, desde a produção até a distribuição às famílias pobres.

Em razão de sua importância e das dificuldades para solução do aleitamento infantil em instituições de assistência, dedicamos um capítulo especial a essa questão.

A questão do leite: As amas-de-leite e as
experiências com a amamentação artificial

Depois das descobertas de Pasteur, a preocupação central das autoridades responsáveis pelos estabelecimentos de crianças na primeira idade transferiu-se para a melhoria do aleitamento por mamadeira. A batalha do leite foi deflagrada em várias frentes: prevenção da tuberculose das vacas; higiene dos estábulos; controle do transporte do leite; verificação das operações de conservação (pasteurização, esterilização) e da fabricação (leite condensado, leite em pó) eram as questões sobre as quais se debruçavam os cientístas europeus e norte-americanos. Resolvida em parte, a questão do leite, tomou relevo uma questão mais ampla e mais difusa: a da educação, que começava pelas próprias mães. Desse modo, aliava-se o esforço filantrópico da luta contra a mortalidade infantil à preocupação científica em melhorar a qualidade física e mental da humanidade.

A assistência e a proteção à infância abandonada estiveram apoiadas, em toda a época pré-pasteuriana, em um dos seus mais importantes pilares de sustentação: o sistema de amas-de-leite mercenárias, ou de criadeiras.

As autoridades, desde a época colonial, não desprezavam o valor social das amas. A tal ponto, que não hesitaram em solicitar à Coroa a extensão às amas-de-leite, da Roda do Rio de Janeiro—como já haviam feito para as da Bahia—dos privilégios concedidos às amas-de-leite de Lisboa. Por Alvará de 1º de janeiro de 1755, concedem-se a elas os mesmos privilégios dados à Misericórdia de Lisboa, sendo um deles "o que se lhe concedeu a favor das crianças expostas, para os maridos das amas que as criassem...e aos filhos das mesmas amas...gozassem da isenção do serviço militar." Esses privilégios deveriam atuar como fortes emuladores para que muitas mulheres se apresentassem como amas dos expostos.

Quem eram essas mulheres que, mediante uma insignificante ajuda financeira, se prestavam a criar filhos de outros, a amamentá-los e vesti-los até a idade de 3 anos—e, em alguns casos, por um pagamento bem menor—a conservar consigo as crianças, até a idade de 7 anos, ou mesmo, gratuitamente, por toda a vida? De onde vinham essas mulheres, ora odiadas e responsabilizadas pela mortandade dos expostos, por suas doenças e por sua má-educação; ora elogiadas, premiadas e exaltadas?

Venâncio, que procurou estudar essas personagens centrais do sistema das Rodas, afirma que, pelo menos no Rio de Janeiro e em Salvador, as criadeiras eram recrutadas principalmente na zona urbana, ao contrário do que ocorria na Europa onde se buscavam de preferência amas camponesas.

De fato, em 1759, das mulheres que serviram como criadeiras dos expostos na Roda de Salvador, 32 tiveram seus endereços registrados. Todas moravam nas freguesias urbanas, da Sé, de São Pedro (onde se encontrava a Roda), de Santa Ana, de Vitória, da Conceição da Praia e do Pilar, todas nas vizinhanças da Roda.

Cem anos depois, 26 expostos foram dados a suas amas-de-leite, que eram, igualmente, todas moradoras nas freguesias urbanas da cidade e, em sua maioria, vivendo perto da Roda: 11na Sé; 5, em São Pedro, o Velho; 2, em Brotas; 2, no Pilar; e 1, na Vitória. Só vinham de mais longe as amas de Itapuã, de Guadalupe, do Aljube e do lugar de Ossos, sendo que apenas uma não tinha endereço registrado. De resto, os próprios regulamentos da Roda, no século XIX, estipulavam que as amas-de-leite deveriam ser moradoras na cidade. Pretendia-se, com isso, tê-las por perto, para maior controle e mais fácil vigilância.

Em São Paulo, porém, a situação era diferente. A maioria das amas-de-leite da Roda da Santa Casa vinha de distantes bairros rurais, particularmente de Itapecerica e de Santo Amaro. As amas desses dois bairros eram muito pobres e a mortalidade das crianças sob seus cuidados sempre foi muito elevada. "Tais falecimentos entre crianças entregues às amas de Santo Amaro e de Itapecerica, onde a fiscalização até agora não tem podido ser tão rigorosa como convém, é muito grande", denunciava o Mordomo dos Expostos da Roda de São Paulo..

Em sua quase totalidade, as criadeiras eram mulheres livres e que viviam sós (solteiras ou viúvas). Em 1758, na Roda da Bahia, 51% das amas-de-leite eram solteiras e 21% viúvas; apenas 28% eram casadas. É bem verdade que essas proporções espelham de certa forma a situação real das mães baianas pobres: a maioria vivia só (mães solteiras) ou em concubinato.

No último ano em que o sistema de amas-de-leite mercenárias vigorou na Roda de Salvador (1881), das crianças entradas, 20 foram dadas a criar a amas-de-leite; estas eram quase todas solteiras, com exceção de duas, casadas. Nenhuma era escrava.

Mas havia escravas que eram encaminhadas à Misericórdia pelos seus senhores para se inscreverem como amas-de-leite. Algumas vezes, um senhor mandava expor o filho de uma escrava na Roda, ao mesmo tempo que mandava retirar uma outra criança, para a escrava amamentá-la e cuidar dela. O senhor embolsava o salário que a sua escrava recebia da Misericórdia e, mais tarde, mandava buscar seu "escravinho" já criado. No entanto, esses casos não chegaram a ser tão freqüentes, como alguns autores foram levados a acreditar.

Além de viverem nas cidades e de serem, em grande parte, mães solteiras livres, as amas-de-leite eram majoritaramente pardas e mestiças. Em 1758, na Bahia as amas-de-leite da Roda eram: pardas (41%) e mestiças e crioulas (12%). Em 1862, das 19 amas que receberam expostos em suas casas—e que deram informação sobre sua côr—11 eram pardas e 4 crioulas e cabras (mestiças de negro e mulato); portanto, 80% não eram brancas. Em 1881, todas eram pardas, crioulas ou cabras, sendo apenas uma branca; e todas moravam na zona urbana da capital baiana.

As amas-de-leite dos expostos eram mulheres extremamente pobres, que moravam em tugúrios exíguos e pouco higiênicos. O Dr. Vasconcelos, em 1938, mostrava que as criadeiras do Rio de Janeiro viviam, na sua maioria, "em um quarto aberto no corredor de uma casa de cômodos, ou em um barracão levantado com folha de zinco, na raiz de um morro", sem ar e sem luz. Os lactentes
jazem, choramingando, em berços feitos com tábuas de caixotes, os narizinhos sempre sujos, de onde escorre um catarro crônico, a pele desidratada, coberta de cascões, de eczemas e de furúnculos, quando não estigmatizada pelas lesões típicas da escabiose. Os maiores espalham-se pelo chão, de gatinhas uns, acocorados outros, roendo pedaços de pão ou escrafunchando a terra com as mãos, mostrando desde já um ventre abaulado, tenso de vermes. Cercam-nos homens e mulheres em promiscuidade, muitas vezes doentes, de vícios e maus hábitos. A tuberculose grassa.
A pobreza das amas era acompanhada, naturalmente, da ignorância e da falta de conhecimentos e prática das regras mais elementares de higiene. "A criadeira é uma mulher ignorante dos mais comezinhos preceitos de higiene. Essa ignorância lhe é apanágio próprio. … Descuida da alimentação e do trato das crianças. … A ânsia do lucro faz com que receba nos seus cômodos maior número de crianças do que eles podem comportar. … Falta-lhe o carinho de mãe", denunciavam.

As amas paulistas de Santo Amaro e de Itapecerica eram "muito ignorantes, pertencentes a famílias que trabalhavam na lavoura." Em geral, abrigadas em casas primitivas, sem qualquer recurso higiênico, tratadas por pessoas incultas e paupérrimas, as crianças viviam na mais completa falta de cuidados. Daí o seu elevado índice de mortalidade.

Sempre, e em todo lugar, se pagaram salários irrisórios às amas-de-leite dos expostos. E isso foi dado como causa da pouca atenção e dos parcos cuidados das amas para com os bebês expostos. No Rio de Janeiro, a Câmara da Cidade, em 1740, pagava 4$800 por mês para criação e alimento "como sempre se praticou neste Senado." Mas com o aumento no número de expostos, cresceu a dívida da Câmara "e ficaram as suplicantes sem pagar." O Rei interveio em favor das pobres amas. "Se não houver meios", ordenava o Rei, "hei por bem que possais impor uma contribuição, naquela parte que parecer mais suave e conveniente, para que dela possa sair a importância desta despesa" (Lisboa, 1693).

A carência constante de amas-de-leite nas Casas de Expostos, aliada à consciência dos graves problemas que elas traziam para as crianças—particularmente o da alta mortalidade infantil—levou os responsáveis por essas instituições a propor a amamentação artificial.

O aleitamento artificial, definia um jovem médico carioca, era aquele que substituía "o leite da mulher pelo leite de um animal, ordinariamente cabra, vaca ou jumenta, que se dá à criança por meio de uma mamadeira ou de uma colher, ou que a criança suga das mamas do próprio animal." Mas a questão era saber qual o meio mais adequado para administrar o leite de animais à criança. Os instrumentos que se usavam na época eram "a colher e o timbale" (espécie de copo), principalmente, que depois foi substituído pela mamadeira, que é uma garrafinha cuja capacidade regula cento e vinte gramas, fechada por um pedaço de esponja fina, coberta por um pedaço de pano que se prende ao gargalo do instrumento. Esse sistema tinha inconvenientes e, por isso, susbtituíram a esponja "por um bico, espécie de mamelão,…de goma elástica, ou de marfim." Em sua tese, o Dr. Pereira discorria, ainda, sobre o sistema de aleitamento diretamente no animal, usado em alguns lugares da Suíça, da Alemanha e do Brasil, como afirmava. "Este modo de aleitamento deve ser aconselhado quando a criança, recentemente desmamada, adoece e tem necessidade de uma alimentação exclusivamente composta de leite, ou quando se está na impossibilidade de se encontrar uma ama." O médico aconselhava a escolha de "uma cabra sem chifres, nova, domesticada, não primípara, de cor branca e pêlos longos."

O Dr. Pinto (1859) sugeria o uso de mamadeiras:
Toma-se uma garrafinha de gargalo estreito e que possa conter a quantidade de leite que se pretende dar. Toma-se uma esponja fina, que se corta à feição, e introduz-se, de sorte que fique de fora uma polegada mais ou menos; cobre-se com um pouco de cambraia, cassa fina ou fazenda semelhante; amarra-se com um fio ao gargalo da garrafinha, tendo-se dado uma volta sobre a esponja...para dificultar ligeiramente a saída do leite pela sucção...e não é necessário recomendar que a esponja, sempre que tiver servido, deve ser lavada em água quente, para que saia o leite.
Só com a descoberta das técnicas de pasteurização, vulcanização e esterelização—e com a fabricação de derivados do leite—pôde-se contornar o problema da conservação dos expostos, nos asilos, por meio da amamentação com leite de animais.

Com esses "progressos" foi possível terminar com o sistema de amas mercenárias nas Rodas de Expostos. A Roda da Bahia parece ter sido a primeira a acabar com ele, extinguindo-o em 1882, quando criou a Casa da Amamentação. Na Roda de São Paulo esse sistema persistiu por mais tempo. O sistema de criação de bebês em casas das amas só foi extinto em 1936, quando foi criado na cidade o Berçário, em uma casa alugada da Rua Frederico Steidel 157. A partir daí as taxas de mortalidade começaram a cair.

Resolvidos, em parte, os problemas com a conservação do leite, colocava-se outro grave problema e de difícil solução imediata, particularmente nas zonas pobres das cidades maiores: o da sua distribuição. Experiências bem sucedidas na Europa foram introduzidas no Brasil, como as Gotas de Leite e as creches para as mães trabalhadoras. Nas primeiras, as crianças pobres cadastradas recebiam diariamente a quantidade de leite esterilizado necessária para sua alimentação. Nas creches, que começavam a ser construídas (especialmente nos bairros proletários), os bebês e as crianças maiores recebiam rações de leite dosadas.

Na cidade de São Paulo foi fundada, pelas senhoras da elite, a Sociedade Feminina de Puericultura que, em 1914, sob a direção de Paulina de Souza Queiroz, mantinha duas instituições de benemerência: a Gota de Leite e a Creche Baroneza de Limeira. Informa a Revista A Cigarra, desse ano:
Na primeira dessas instituições, a criança pobre, privada do aleitamento natural, encontra gratuitamente leite esterilizado para a sua nutrição. O leite é distribuído em pequenos vidros graduados, bem fechados, com a quantidade suficiente para cada vez, pronto para ser utilizado.
A vantagem das Gotas de Leite é que, além do leite, as crianças eram controladas e as mães orientadas pelos médicos. "Aos domingos, a criança matriculada é pesada e examinada pelo médico da instituição, que lembra então, aos pais, os cuidados a seguir para o bom êxito do aleitamento esterilizado." Na creche "são recebidas as crianças desde poucos dias de idade até 5 anos, filhas de empregadas que não as podem ter, devido às suas ocupações, em sua companhia." Havia internato e externato, e distribuição de roupas, alimentos, remédios e atendimento médico.

As Gotas de Leite tiveram grande difusão no Brasil, especialmente no Estado de São Paulo, onde havia similares em várias das grandes cidades do interior. Em Araraquara, por exemplo, foi construído um edifício especial para a Gota de Leite, com consultórios e enfermarias para lactentes "com todos requisitos de higiene", informava O Estado de São Paulo, de 20 de julho de 1923.

No Rio, as Gotas de Leite foram caridosa instituição filial do IPAI (Instituto de Proteção e Assistência à Infância), criado por Moncorvo Filho em 1899 para distribuição gratuita de leite às mães necessitadas. Cada manhã procedia-se à distribuição gratuita de cestas de mamadeiras personalisadas a cada mãe carente. Pesava-se semanalmente a criança cadastrada, ministravam-lhe vacina antivariólica, davam-se conselhos às mães. Com isso procurava-se, também evitar ao máximo, o abandono de bebês nas Rodas, ou em qualquer outra parte.

Com esses novos programas, a mortalidade infantil, começou a cair, de maneira geral, no País, e igualmente a mortalidade infantil dentro dos Asilos e Rodas que adotaram as medidas propostas pela medicina higiênica. Os resultados começaram a aparecer depois da década de 1920.

As teorias da eugenia e da degenerescência, presentes no início do século XX, permitiram o aparecimento de programas de cunho filantrópico, voltados para a prevenção. A família, a mãe e a criança pobres foram os alvos privilegiados. O papel capital estava reservado ao médico. "O médico há de ser, antes de tudo, um higienista...deve instruir a família como evitar esta ou aquela doença infecciosa, como deve comer e vestir..."

Ao lado dos avanços técnicos em relação à preservação e à distribuição do leite, o discurso médico transformou o aleitamento materno em problema nacional. Amamentar, como bem mostra Holanda, passou a ser sinônimo de amar De certa forma, estava implícita aí uma condenação à mãe que abandonava o filho.

Essas medidas todas levaram naturalmente à queda do abandono de crianças. A mãe pobre e trabalhadora encontrava agora novos meios para criar seus filhos, sem necessidade de abandoná-los em instituições protetoras.

Conclusões

Na Europa da primeira metade do século XIX, o abandono de crianças ao nascer chegou a níveis inimagináveis. De cada duas crianças que nasciam, uma era abandonada, em muitas cidades européias dessa época. No Brasil, em que pese o fenômeno do abandono estar presente ao longo de toda sua história, nunca atingiu níveis acima de 20% dos nascimentos de crianças livres.

No entanto, as taxas de ilegitimidade foram sempre muito altas nas cidades. Seus níveis poderiam situar-se em torno de 50% dos nascimentos da população livre.

As crianças deixadas nas Rodas de expostos brasileiras dificilmente sobreviviam à idade adulta. As taxas de mortalidade infantil eram elevadíssimas, as mais altas de todos os segmentos da sociedade, inclusive dos escravos. Cifras de 85% e mesmo de 90% de mortes antes do primeiro ano de vida eram encontradas nessas instituções.

O sistema de amas-de-leite mercenárias transplantado para as rodas de Expostos do Brasil foi a maior responsável por essas taxas demortalidade elevadas.


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